- Nunca imaginei que veria algo assim aqui na Rússia! – disse um homem alto ao entrar na loja, acompanhado de uma jovem moça.
Ouvia comentários semelhantes o dia todo, desde que chegara. Inicialmente aborrecia-se: não admitia aquele exibicionismo e fazia de tudo para demonstrar sua irritação. Com o tempo, acostumara-se e agora apenas ficava imóvel, fingindo não ouvir. Aborrecia-se de tal maneira que punha-se a pensar: Por que simplesmente não posso me revoltar? O que eles poderiam fazer se eu me decidisse a enfrentá-los? Se ao menos pudesse vagar alguns momentos, poderia organizar melhor suas idéias e tomar uma decisão efetiva – mas não lhe eram permitidas tais regalias. As vozes em línguas diversas misturavam-se, não conseguia distinguir os odores e permanecer preso ali o dia todo afetava-lhe o ânimo de tal maneira que seus pensamentos surgiam de forma fragmentada. Poderia pensar durante horas sem chegar a conclusão nenhuma, e quem o via chegava a pensar que estava morto – de forma que, quando voltou a prestar atenção ao ambiente, o homem já se encontrava a seu lado.
A moça parecia não importar-se, olhava as mercadorias da loja com calculado desinteresse. O marido, por sua vez, observava-o com atenção. Arriscaria-se a dizer que o admirava, mas sua apatia naquele instante era tal que não teria arriscado a emitir nenhuma opinião nem que disto dependesse sua vida. O homem encarava-o, mas não se aproximava: mantinha uma distância de pelo menos dois metros. Analisava friamente o comportamento do homem, que até parecia temer ser mordido ou qualquer coisa do gênero, por manter aquela distância calculada. “Ah, os homens de hoje em dia não sabem mais como se portar em sociedade, afasta-se como se eu fosse um monstro; e nem me conhece! O que se deve fazer para encontrar homens de verdade nessa velha São Petersburgo?!”- questionava-se quando, inesperadamente, o homem começou a aproximar-se. Os olhares do homem atravessavam-no e começava a considerar o fato do homem estar realmente interessado em ver cada centímetro dele, em conhecer cada vértebra e cada órgão da maneira mais próxima possível. Considerava-se invadido perante análise tão minuciosa e sentia enfim vontade de mover-se, reclamar, protestar. Anteriormente, mover-se teria sido uma espécie de exibicionismo e isso ele não admitia que pensassem de si- temia ser comparado com algum francês – mas, agora, seria apenas uma maneira de mostrar-lhe o quão petulante era o comportamento do homem. Não arriscava-se, no entanto, a perder a sua chance de conseguir entabular um primeiro diálogo inteligente desde que chegara ali. Controlava-se e conseguiu, por fim, acalmar-se. Esperava apenas um primeiro contato por parte do homem: um “olá”, ou quem sabe um “bom tarde, Senhor.”
- O que tanto olhas aí, Siémon Siemenovitch? – perguntou subitamente a mulher, que olhava agora para uns macaquinhos enjaulados num dos cantos da loja.
Tal pergunta causou-lhe uma incrível perturbação no espírito, visto que passou a sentir uma ansiedade que não haveria reconhecido como sua até um instante atrás. Subitamente seus pensamentos pareceram ordenar-se: naquele instante seria capaz de inventar um modo de sair dali instantaneamente, nem que para isso fosse necessário utilizar-se das mais complicadas ferramentas, se quisesse, apenas utilizando-se do impulso criativo que aquela empolgação lhe trazia. Esperava, no entanto, para dispor de toda essa sua criatividade no diálogo com o homem. Considerava certo que o homem, perante o questionamento da esposa, haveria de utilizar-se da frase dela para entabular uma conversa qualquer. Não se importava com o assunto, haveria de conduzir o diálogo da maneira que quisesse – e seria capaz de convencer multidões. Tudo isso passava-se por sua mente em uma velocidade lancinante, quando o homem respondeu, enfim:
- Parece-me que está morto. Como puderam deixar aqui uma carcaça dessas ao relento?
Ocorreu-lhe então uma mudança totalmente contrária a anterior. Enraiveceu-se e apenas conseguia questionar-se como pudera o homem ser tão ignorante a ponto de considerá-lo morto no momento em que, pela primeira vez em meses, ele finalmente se sentira capaz de dar um verdadeiro sentido a sua vida? Como pudera subestimar suas capacidades de tal maneira? Não apenas não conseguia se conformar com o fato como foi tomado pela raiva. Se seu grito pudesse expressar todo o seu ódio àquele tal Siémon Siemenovitch, seria capaz de acordar todo o povo russo e, quem sabe, toda a Europa. Então, movido estritamente pelo seu ódio a ser tão alienado, cego e estúpido, cedeu a tua mais horrível natureza: engoliu o homem, numa mordida só.
Afinal, era de se esperar que um crocodilo não aceitasse tal ofensa de um homem tão ordinário.
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