sábado, 29 de novembro de 2008

“Acontece que os cenários desabam. Os gestos de levantar, o carro-elétrico, quatro horas de escritório ou de fábrica, refeição, carro-elétrico, quatro horas de trabalho, refeição, sono e segunda-feira, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, esta estrada segue-se com facilidade a maior parte do tempo. Só um dia o “porquê” se levanta e tudo recomeça nessa lassidão tingida de espanto.(...). A lassidão está no fim dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura, ao mesmo tempo, o movimento da consciência.”


O homem absurdo de Camus é o homem que, ao mesmo tempo em que o constata cotidianamente, não tenta estabelecer comunhão nem conformar-se com o absurdo - de forma totalmente consciente. Mas, então, o que seria o absurdo? Tal questão torna-se, dessa forma essencial – já que na exposição do homem absurdo Camus utiliza-se do absurdo como pressuposto, apenas mostrando-o e não buscando prová-lo.

O sentimento do absurdo – que seria uma espécie de comprovação cotidiana e empírica do absurdo, um indício -, nasce da relação homem/mundo. Primeiramente, Camus afirma que “a primeira diligência do espírito é a de distinguir o que é verdadeiro do que é falso”, ou seja, que o homem tem em si a necessidade de compreender a realidade pelo pensamento. A essa necessidade do homem de aproximar-se do mundo conhecendo racionalmente o seu funcionamento em absoluto Camus chama de nostalgia de unidade, visto que a julga inatingível. O homem, enquanto capaz de sentir as coisas decide-se por instituir a essas sua existência, de maneira racional, embora tal conhecimento puramente “descritivo” não possa efetivamente lhe dizer muita coisa. “Aí pára toda a minha ciência, o resto é construção”. A partir do momento que a Ciência que deveria lhe ensinar o mundo não passa de um conjunto de hipóteses que não oferece nenhuma certeza (ou nenhuma verdade, pode-se dizer), percebe-se essa inatingibilidade de unidade. É da distância entre o universo que nos é inexplicável e o desejo humano de tudo compreender que surge o sentimento do absurdo – que não prova a existência do absurdo e nem tem isso como objetivo, mas que nos permite compreendê-lo ao menos em partes.

O absurdo configura-se então como o divórcio do que o homem pretende conhecer e do mundo, e desta forma, não “está nem num nem noutro dos elementos comparados”. (1) O absurdo não existe nem fora do espírito humano e nem fora desse mundo, e, como se estabelece por essa relação de contraste, necessita do não consentimento para permanecer – visto que qualquer espécie de “conformismo” com o absurdo não passa de uma fuga, pois lhe retira o caráter de divórcio ou altera o conceito do mundo como racionalmente inatingível. Geralmente configura-se numa fuga para a esperança, que é sem sentido – lembremos que o homem absurdo é racional, e que a esperança não tem fundamento racional algum que a sustente. A religião aparece como um modo de fuga, por exemplo, buscando instituir sentido ao mundo pela criação de uma Entidade que o regule, mesmo que fora da nossa compreensão – é o surgimento de um Deus atribuído de características absurdas, “injusto, inconseqüente e incompreensível”. Foge ao absurdo por tentar suprimir o desejo humano de compreender.

O homem absurdo é o que, mesmo consciente do absurdo, nega a fuga (ou salto, como chama Camus) para a transcendentalidade, seja este salto por meio da criação de esperanças ou pela racionalização. (2) “Aquele que, sem o negar, nada faz pelo eterno. Não que a nostalgia lhe seja estranha. Mas prefere-lhe a sua coragem e o seu raciocínio.” Dessa forma, vive segundo as conseqüências que se possa tirar do absurdo: a revolta, a liberdade e a paixão. A revolta é responsável pela permanência do absurdo e, conseqüentemente, pela lucidez do homem absurdo – sem fugas. A liberdade por sua vez, é uma decorrência da negação ao eterno e ao transcendental. Se não há o eterno, a esperança infundada, e também não há o amanhã, pois se morre a qualquer momento, o homem liberta-se do estado em que “julga que qualquer coisa na sua vida se pode dirigir” para reconhecer que não é capaz de nada dirigir. Se antes era escravo da própria “liberdade”, no qual decidia suas ações visando um futuro que lhe foge às mãos, agora se sente livre dessa ilusão (3). Podemos concluir que nesta questão apenas resta ao homem absurdo a liberdade de ação e o momento presente. A vida em tal universo, segundo Camus, significaria a “indiferença pelo futuro e a paixão de nos esgotar tudo o que é dado” – ou seja, a paixão pelo ato de viver, que é por sua vez a manutenção da revolta quanto ao absurdo. (4)

E dessa forma vive o homem absurdo – ou foge ou está fadado a andar ao lado de sua própria revolta, sua liberdade e sua paixão. Engana-se, no entanto, aquele que julga que o homem absurdo seja obrigatoriamente infeliz. “A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra”. O homem absurdo é consciente, livre: o seu tormento e o seu destino lhe pertencem. Assim o ator e o Don Juan, citados por Camus, não são seres infelizes embora absurdos. Ou até mesmo Sísifo, o homem condenado a empurrar o rochedo ao alto da montanha para vê-lo cair incessantemente. Sísifo é um homem absurdo: a paixão pela vida, o descaso pela ilusão de eternidade dos deuses, o tormento constante – são todas características que se sobressaem. Como homem absurdo Sísifo, em seu “castigo” (embora não haja aqui sentimento de culpa ou remorso) há de permanecer consciente: a pedra e o destino de carregá-la lhe pertencem, assim como o tormento e a eminência da morte são constantes do homem absurdo. “É preciso imaginar Sísifo feliz” – diz Camus-, para que se possa compreender a felicidade do homem absurdo. Ou, em vez disso, talvez baste apenas compreender o desejo de Mersault em ser recebido ao pé do cadafalso com gritos de ódio.




(1)            Em O estrangeiro Camus traz ao leitor o sentimento do absurdo pelo distanciamento entre as ações de Mersault e o que o leitor, com seus costumes calcados na sua vivência em sociedade e etc, espera que o protagonista faça. Esse sentimento de absurdo cresce com o decorrer do livro, com o aumento da contradição entre essas duas faces.  Inicialmente o leitor espera de certa forma que o comportamento da personagem lhe seja explicado de maneira racional, o que acaba por não ocorrer. Dessa forma Camus insere o próprio leitor no sentimento do absurdo: o leitor que quer compreender e explicar Mersault não pode fazê-lo, de maneira análoga ao ato humano de tentar explicar o mundo inexplicável.

(2)           Nesse ponto convém destacar que o suicídio também é uma espécie de fuga do absurdo – pois destrói um dos elementos que lhe é inerente: a presença do espírito humano.    

(3)           A liberdade do homem absurdo é colocada por Camus com a citação de Dostoiévsky: “Tudo é permitido”. A idéia sintetizada na citação não é, no entanto, não a de um “grito de libertação e alegria, mas de uma constatação amarga”. Se houvesse um Deus, bastaria seguir seus ensinamentos e a vida teria sentido. Tal não ocorre, e então tudo é permitido porque não há sentido. Para o homem absurdo o julgamento das ações lhe é indiferente, de modo que não “se para ele pode haver responsáveis, não há culpados.” Mersault é dessa forma o responsável pela morte do árabe e não se nega então a enfrentar as conseqüências de seus atos, mas também não se julga culpado por isso.

(4)           Essa paixão de “esgotar o que nos é dado” implica a substituição da escolha de experiências pela sua qualidade (o que seria observado no contexto de que a vida tenha um sentido, alguma espécie de futuro que dependa dessas escolhas, por exemplo) pela simples vivência da maior quantidade de experiências que o mundo lhe proporcionar. A construção narrativa d’O estrangeiro tenta refletir essa equivalência entre as experiências, por exemplo,  pelo uso de frases que expressem acontecimentos cujos valores atribuídos pelo leitor são totalmente distintos (o enterro da mãe e o ato de tomar café, etc). Camus afirma também que tal quantidade de experiências apenas dependeria do tempo que se vive – sendo os únicos problemas irremediáveis do homem absurdo a morte prematura e a loucura. É essa questão da morte prematura que Mersault, nas últimas páginas d’O estrangeiro, enfrenta. Por mais que a morte lhe seja inevitável, em algum ponto da sua vida, Mersault também optaria pela maior quantidade de experiências. 

     

5 comentários:

Marian disse...

a Suely achou lindíssimo.

Marian disse...

(eu ainda não li...)

Cidadão ³ disse...

projeto = (y).

Roberto disse...

tem uma linguagem muito complexa que me afasta com leitor da obstinada leitura...
isso completado pela fato de seguir e muito a filosofia do guerreiro, acabo não me achando no contexto...
ou seja!


XD!

Rena Ta disse...

você tem notas de rodapé! *_*